quarta-feira, 31 de março de 2010

Adeus aos meus pudores

Se algum um dia,
Ao mostrar o corpo,
Tão meu, tão intocado,
Tão sagrado, tão guardado,
Constrangimentos senti,
Já não tenho mais tantos pudores,
Em expor os seios nus,
Diante de olhos assépticos,
Profissionais, éticos.
Não há novidade,
Não há sobressaltos,
É coisa do dia a dia,
Apenas terapia,
Apenas profilaxia,
Do câncer extirpado,
Banido, recortado,
Que foi me acontecer.

Lilia Maria
14/09/2004

Ontem, nem sei porque, comentei que um dia tive câncer. Eu não falo muito do assunto. Passou. Já recebi alta e já deixei de ser uma portadora assintomática. Claro que o meu caso não era grave. Numa escala de 0 a 5, onde 0 seria sem a doença e 5 seria o estado terminal, eu estaria no 1. Como disse meu oncomastologista, tenho um anjo da guarda que me ama muito.
Lembro-me que passei muitos meses fazendo exames. Todos davam negativo, mas o Dr. José David não ficava satisfeito. Ele constatou a presença de um tecido diferenciado na minha mama direita. Era como se eu tivesse levado uma bolada (palavras dele) e machucado internamente. Depois de algum tempo ficou uma cicatriz. Segundo ele, esta cicatriz era o local ideal para um câncer se alojar.
Um dia ele disse que estava cansado de mandar me espetar (para os exames era feita uma punção e retirado o material para a biopsia) e que iria retirar cirurgicamente todo o tecido. Ele disse que eu poderia escolher entre operar em julho ou dezembro, mas que não deveria passar disso.
Minha mãe sempre me dizia que se a gente tem que passar por alguma coisa ruim que seja logo, pois assim logo passa. E assim foi. Escolhi julho. Depois de dez dias da cirurgia, recebi das mãos da enfermeira do meu médico o exame total do material extirpado. Li, li, li e de repente no meio do texto apareceu a palavra temida: carcinoma. O tempo parou. Não... Li errado... Vamos lá... Reli, reli, reli... Até que finalmente entrei na sala do médico. A primeira coisa que ele me falou: você é católica? Você acredita em anjo da guarda? Então reza muito pelo seu, pois se esperássemos até dezembro não sei o que eu teria que tirar.
Saí do consultório com um pedido de ressonância magnética, pois ele não sabia previamente poderia ter sobrado alguma coisa ainda. Depois foram 28 sessões de radioterapia. Em momento algum eu pensei que poderia não dar certo. Correu tudo bem. E aqui estou eu.
Hoje algumas pessoas “menos avisadas” dizem: nossa! Que bom que era um câncer benigno. Gente!!!! Já cansei de explicar que não há câncer benigno e que hoje tem cura. Quanto mais cedo for feito o diagnóstico, mais chance se tem de vencer a doença. Quanta gente percebe que tem algo errado e diz que não vai ao médico, pois tem medo de ter um câncer. Na verdade esse medo mata mais que a própria doença.
É isso... Este poema foi escrito quando iniciei o meu tratamento.
Cuidem-se!!!!!



segunda-feira, 22 de março de 2010

Versejando

Eu era a rainha de copas,
Você o rei de paus.
Juntos por várias rodadas,
Na mesa ou nas mãos do jogador.
Até que de repente...
Uma canastra nos separou.
E o tempo passou...

Fui a corda e a âncora
Que segurava o barco no lugar.
Você, o barco pomposo,
Feito para nunca naufragar...
Mas quem podia imaginar
Que na corredeira logo à frente
Eu ficaria presa entre as pedras
E você, despedaçado no fundo do mar...

Você era o lobo que vagava à noite
E eu o falcão que voava ao sol raiar.
Como na lenda muito antiga
Não havíamos de nos encontrar.
Mas no dia do eclipse,
Eu o vi naquela fração de segundo
Antes da morte me encontrar...

Minha alma ainda vaga
Solta aqui e em todo lugar.
Mas em que mundo andará a sua?
Na poesia que agora escrevo
És a letra, a idéia a rima
E eu fico olhado através da telinha,
Esperando que tudo vá se apagar.

Lilia Maria

Gente! Que desgraceira... Eu não acredito que escrevi isso!!!
Enfim... A idéia nem é original...

sexta-feira, 19 de março de 2010

AFINIDADE

A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil,
delicado e penetrante dos sentimentos.
O mais independente.

Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos,
as distâncias, as impossibilidades.
Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação,
o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto em que foi interrompido.
Afinidade é não haver tempo mediando a vida.

É uma vitória do adivinhado sobre o real.
Do subjetivo sobre o objetivo.
Do permanente sobre o passageiro.
Do básico sobre o superficial.
Ter afinidade é muito raro.

Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.
Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois
que as pessoas deixaram de estar juntas.
O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples
e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.

Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos
fatos que impressionam, comovem ou mobilizam.
É ficar conversando sem trocar palavra.
É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento.

Afinidade é sentir com.
Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo.
Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser amado.
Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios.

Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.
É olhar e perceber.
É mais calar do que falar.
Ou quando é falar, jamais explicar, apenas afirmar.

Afinidade é jamais sentir por.
Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.
Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.
Compreende sem ocupar o lugar do outro.
Aceita para poder questionar.
Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.

Só entra em relação rica e saudável com o outro,
quem aceita para poder questionar.
Não sei se sou claro: quem aceita para poder questionar,
não nega ao outro a possibilidade de ser o que é, como é, da maneira que é.
E, aceitando-o, aí sim, pode questionar, até duramente, se for o caso.
Isso é afinidade.
Mas o habitual é vermos alguém questionar porque não aceita
o outro como ele é. Por isso, aliás, questiona.
Questionamento de afins, eis a (in)fluência.
Questionamento de não afins, eis a guerra.

A afinidade não precisa do amor. Pode existir com ou sem ele.
Independente dele. A quilômetros de distância.
Na maneira de falar, de escrever, de andar, de respirar.
Há afinidade por pessoas a quem apenas vemos passar,
por vizinhos com quem nunca falamos e de quem nada sabemos.
Há afinidade com pessoas de outros continentes a quem nunca vemos,
veremos ou falaremos.

Quem pode afirmar que, durante o sono, fluidos nossos não saem
para buscar sintomas com pessoas distantes,
com amigos a quem não vemos, com amores latentes,
com irmãos do não vivido?

A afinidade é singular, discreta e independente,
porque não precisa do tempo para existir.
Vinte anos sem ver aquela pessoa com quem se estabeleceu
o vínculo da afinidade!
No dia em que a vir de novo, você vai prosseguir a relação
exatamente do ponto em que parou.
Afinidade é a adivinhação de essências não conhecidas
nem pelas pessoas que as tem.

Por prescindir do tempo e ser a ele superior,
a afinidade vence a morte, porque cada um de nós traz afinidades
ancestrais com a experiência da espécie no inconsciente.
Ela se prolonga nas células dos que nascem de nós,
para encontrar sintonias futuras nas quais estaremos presentes.
Sensível é a afinidade.
É exigente, apenas de que as pessoas evoluam parecido.
Que a erosão, amadurecimento ou aperfeiçoamento sejam do mesmo grau,
porque o que define a afinidade é a sua existência também depois.

Aquele ou aquela de quem você foi tão amigo ou amado, e anos depois
encontra com saudade ou alegria, mas percebe que não vai conseguir
restituir o clima afetivo de antes,
é alguém com quem a afinidade foi temporária.
E afinidade real não é temporária. É supratemporal.
Nada mais doloroso que contemplar afinidade morta,
ou a ilusão de que as vivências daquela época eram afinidade.
A pessoa mudou, transformou-se por outros meios.
A vida passou por ela e fez tempestades, chuvas,
plantios de resultado diverso.

Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças,
é conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas,
quantos das impossibilidades vividas.

Afinidade é retomar a relação do ponto em que parou,
sem lamentar o tempo da separação.
Porque tempo e separação nunca existiram.
Foram apenas a oportunidade dada (tirada) pela vida,
para que a maturação comum pudesse se dar.
E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais,
a expressão do outro sob a forma ampliada e
refletida do eu individual aprimorado.

(Arthur da Távola)


Há muito que não escrevo. Ando sem tempo. Inventei de fazer uma matéria na pós que está me tirando o sono. Quarta-feira pedi o cancelamento da matrícula. Além de optativa são os últimos créditos que faltam. Antes de fazer esta matéria, preciso terminar a pesquisa. Fazer o exame de qualificação e aí, tudo bem, posso me envolver com algo mais trabalhoso.
Bom, o motivo de postar este texto é que hoje "reencontrei" um amigo de muitas décadas que há mais de trinta anos eu não tinha notícias. Foi MUITO bom. E exatamente como diz o texto: tempo e separação não existiram. Tenho certeza que retomaremos de onde paramos: uma amizade sincera, gostosa onde tudo pode ser dito sem medo e sem segredos.
Não foi a primeira vez que eu envio este texto para alguém e tenho certeza que não será a última. Quanta gente eu venho garimpando no meio do caminho! Invariavelmente é assim que acontece. O tempo foi apenas um hiato. É só olhar dois minutos para perceber que o carinho e a confiança continuam presentes. Foi assim com o Luiz (Pestana), com o Claudio, com a Kelly, com o Rogério e será assim com o Luis (Pomponio). Outros (re)encontros estão sendo ensaiados. Tenho certeza que é isso que vou sentir quando encontrar com o Mikka e com tantos outros amigos que quero rever.
Recadinho: Mikka, se eu não lhe enviei o texto, ele é seu também.

Lilia