segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Cristina, a clandestina

Hoje remexendo em uma caixa onde guardo alguns documentos, achei o último diário que escrevi. Quantas recordações... Amigos, amores, histórias contáveis para qualquer um... Não tem nenhum segredo... Só coisas que fui guardando ao longo de alguns meses de 1970. Eu parei de escrever alguns dias antes de ir à Europa acompanhando o vovô Pedro e a vovó Lilia.
A princípio quem deveria ir era o meu irmão mais velho, mas ele declinou o convite. Como eu sou a segunda neta, fui a escolhida. Imagina só o alvoroço da minha turma quando eu contei na classe e disse da minha preocupação em perder mais um ano na escola.
Lembro-me bem que a Dona Arízia Zalla, professora de Matemática, pegou a minha caderneta escolar, observou as notas e disse que se eu perdesse o ano não seria pelas notas e sim pelas faltas, afinal eu estaria ausente por 45 dias. Ela mesma se encarregou de conversar com os outros professores e pedir para que todas as minhas provas fossem adiantadas. Eu embarcava no dia 20 de setembro, exatamente a dez dias do encerramento do bimestre. Ela pediu também para que todos fossem generosos com as faltas. O argumento dela era que eu dificilmente teria outra oportunidade igual.
Na época eu tinha uma companheira inseparável, Cristina, a clandestina.
Cristina era uma perereca feita de pano e recheada de arroz. Era toda branquinha rajada de verde e marrom com a parte de baixo cor de rosa. Ele estava sempre sobre a carteira durante as aulas. Era meu mascote. E todo mundo adorava... Ela era pequena, cabia na mão. Por ser feita de arroz ela era gostosa de manusear.
No último dia de aula antes da minha viagem, Dona Arízia pediu-me a Cristina e colocou sobre a mesa. Ela disse que a minha ranzinha seria a minha substituta. Eu ia, mas ela ficava e a presença na aula seria dada a ela.
Assim, a minha pequena clandestina passeou por todas as casas, as malas, as mãos dos colegas de classe que tinham a incumbência todos os dias colocá-la sobre a mesa para que ela assistisse à aula.
Desta forma, quando retornei de viagem, eu tinha apenas algumas faltas e zero em todas as provas do mês de outubro.
Cheguei no dia 4 de novembro e a primeira prova de novembro era justamente de matemática. Tive apenas dois dias para estudar, e consegui, apesar disso, tirar a maior nota da classe e não ficar de exame. Definitivamente Matemática era a minha matéria... Terminei o ano aprovada e com uma bagagem de conhecimentos que curso nenhum me daria. Viajar... Esta era uma grande escola...
Na volta me devolveram a Cristina... Coitada... Estava suja e meio gasta... Tentei arrumar, lavar, trocar o forro... Mas estava muito difícil... Aí a pobrezinha acabou morrendo de parto... Recortei as partes puídas e refiz outra perereca com o que sobrou. Nascia a Cristininha que me acompanhou até a minha entrada na universidade.
Só mais uma coisa que eu acho interessante contar. Na época só havia o aeroporto de Congonhas. A gente embarcava andando pela pista até chegar na escada do avião. A minha classe toda me acompanhou ao aeroporto. Eu me lembro que despedi de todos e fui para o embarque. Quando cheguei no topo da escada, apesar do barulho das turbinas ligadas, comecei a escutar o meu nome. A turma toda estava no terraço acenando. Foi simplesmente maravilhoso. Chorei feito uma boba e levei uma bronca do vovô. Foi aí que me dei conta que esta viagem ia ser longa...
Lilia Maria

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